Amigo Zema,
Deixo alguns comentários ao longo do teu texto.
“Andava a evitar meter a minha foice nesta seara mas já que tem sido um dos> assuntos mais activo nos últimos dias aqui na lista deixo breves> apontamentos, não sem antes vos contextualizar. > Não pretendo ir votar pois sou sensível a argumentos de ambos os lados, mas> quanto mais os dias passam, e o debate acontece, cada vez sinto-me mais> próximo dos defensores do não. Posto isto:> > - Julgo que nunca foi nenhuma mulher presa por ter abortado em Portugal nos> últimos 30 anos;
Sim, é verdade. Mas isso apenas significa que a nossa lei actual não está a ser cumprida. Ao não ser cumprida, o Estado de Direito não está a funcionar convenientemente. Onde já se viu gastarem-se recursos em investigação policial, em acções judiciais, etc., para depois no final a lei NUNCA ser cumprida? Isso é uma razão para alterar a lei, porque certamente ela não está a servir o Estado de Direito. No fundo esse será um argumento para o “sim”.
> - As poucas "abortadeiras" de vão de escada, que há, não vão acabar... Quem> lá vai tem poucos recursos e muitas das vezes às 10 semanas nem sabe que> está grávida. Vão lá depois...
Provavelmente não vão acabar. Mas de certeza que o aborto clandestino vai diminuir. Imensa gente fez um aborto num “vão de escada” (só essa ideia me petrifica) porque não podia ir ao hospital. E além disso as “abortadeiras de vão de escada” vão continuar a ser punidas criminalmente, assim como qualquer mulher que fizer um aborto clandestino (mesmo que antes das 10 semanas). Só é despenalizada a IVG “se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado».”. Esta nova lei não muda nada em relação ao aborto clandestino. Esse continuará a ser punido.
Mais uma coisa. Dos abortos realizados em Portugal (ver ponto e link adiante), cerca de 73% das mulheres fazem-no antes das 10 semanas.
> - Seja esta lei mantida ou alterada, um dos problemas no Pós referendo vai> ser gerir as Listas de espera, e principalmente encontrar equipas médicas> dispostas a efectuar um aborto;
Concordo.
> - O aborto é uma vergonha numa família... Ao torna-lo legal a vergonha> diminui? Acho que muitas não vão aos hospitais por vergonha e irão continuar> a ir ao "privado";
As mulheres não vão ao hospitais porque é crime realizar um aborto actualmente (excepto nas várias situações conhecidas). Mas concordo que decidir um aborto é uma situação muito complicada, e também compreendo que muitas mulheres têm vergonha. Mas, sinceramente, acho que a vergonha diminui quando a sociedade e o Estado deixarem de considerar criminosas as pessoas que interrompem a gravidez. Achas que uma mulher que faz um aborto por ter sido violada tem “vergonha” de o fazer? Não, não tem. A vergonha normalmente reside no facto de ter sido violada (infelizmente, pois a mulher não tem culpa nenhuma, mas quase todas ficam com algum remorso – isto é algo que só uma mulher que tenha passado por uma tragédia desse tipo poderá dizer ao certo). O facto de ser aceite o aborto nessa situação (e isto é só um exemplo) faz com que ela não sinta vergonha. A sociedade aceita esse aborto. E, se o “sim” ganhar, isso significa que a maior parte dos portugueses aceita o aborto até às 10 semanas, e as mulheres já não têm de sentir vergonha. “Vergonha é roubar e ser apanhado”. A vergonha existe, principalmente, por receio de ir parar ao banco dos réus.
Em relação ao privado, a ideia é que se possa ir a um hospital, ou centro de saúde, público ou privado. O que interessa é que esteja “legalmente autorizado”.
> - Quantos abortos são feitos em Portugal? Acho que não são assim tantos> quanto se fala mas não sei...
Oficialmente, 906 em 2005. Mas, e sem contar com os que são feitos em Espanha (que, como sabes, são muitos), realizam-se clandestinamente 18 mil por ano (5 mil mulheres são hospitalizadas devido a complicações pós-aborto, por ano). “De acordo com um estudo recentemente divulgado pela Associação para o Planeamento Familiar, cerca de 350 mil mulheres portuguesas em idade fértil já terão abortado” (http://www.correiomanha.pt/pda/noticia.aspx?id=227482&idselect=90&idCanal=90&p=200). Eu acho que, na verdade, “são assim tantos”.
> - Há alguma razão científica para ser até às 10 semanas? Ou é assim pela> mesma razão que um jogo tem 90 minutos?
Penso que tem a ver com o facto de, nessa altura, o feto não ter ainda sistema nervoso central (e por isso não ser considerado “pessoa humana”). Mas isto é muito discutível, naturalmente.
> - Como se define as 10 semanas? Pelo dia em que a grávida diz que deu a> pinadela? Ou é a olho?
Da mesma forma que sabes quantas semanas tem o bebé que está na barriga da mãe grávida. O tempo começa a contar no momento em que a mãe deixou de ter menstruação (informei-me disto com uma mãe recente! :)).
> - Caso uma grávida vá ao hospital para abortar e porque a consulta demorou 1> semana a ser marcada, e já não possa abortar poderá essa grávida exigir do> estado que assuma a totalidade dos encargos com a criança?
Isto depois terá que ver exactamente com a lei que vai ser escrita, com certeza. O referendo só trata de uma pequena parte (a mais importante, claro está). Não estará no espírito da lei prejudicar uma mulher devido a atrasos nos hospitais, mas este é de facto um problema muito sério. Porque se não for feito antes das 10 semanas, a verdade é que o feto já terá mais tempo de incubação (e portanto estará mais desenvolvido), o que traz os tais problemas de podermos ter ali já uma “pessoa humana”.
> - E se essa mesma grávida, ao não lhe ser dado acesso ao aborto gratuito> porque já tem 12 semanas, recorre à iniciativa privada e o médico que a> acompanhou teve conhecimento deverá fazer participação criminal dessa> grávida?;
Isso é a situação que temos hoje. Se o médico fizer a interrupção estão os dois a cometer um crime.
> - Poderá uma grávida com 10 semanas de gestação menos 1 dia recorrer às> urgências de um hospital? E em caso afirmativo qual será a cor a atribuir à> paciente segundo o Sistema de Manchester? Vermelho? E qual a prioridade> entre um politraumatizado e uma grávida no acesso ao bloco operatório?
Compreendo onde queres chegar, e isso é de facto um problema bicudo. Penso que, mais uma vez, terá de ser resolvido no projecto de lei que for apresentado.
> Tenho dezenas de dúvidas como estas... por isso prefiro pôr-me de parte. Não> quero fazer parte deste processo de escolha. E pela primeira vez na minha> vida não vou exercer o meu direito e dever de cidadania.
Sou sempre contra esse tipo de atitude. Mas, naturalmente, aceito pois essa opção é individual e livre, felizmente. Quando tenho dúvidas voto em branco. No nosso sistema vai dar ao mesmo, eu sei, mas pelo menos fico melhor com a minha consciência: exerci o meu dever (ir votar), e também o meu direito (votar em branco).
> Só acrescento que há argumentos que me deixam doidos… Podíamos também defender o direito de opção de cometer assassinatos… Ficava opção de assassinar na consciência de cada um de nós. Quem > queria mandava balázio, quem não queria não metia chumbo…
Como dizia anteriormente, “os Estados só devem criminalizar uma conduta quando ela seja consensualmente condenada pela sociedade”. O tal “balázio” é consensualmente condenado. Por isso é crime. O roubo, a corrupção, são consensualmente condenados. São crimes. Eu acredito num Estado Livre, de facto, mas também de Direito. Somos livres mas temos responsabilidades. A nossa liberdade termina quando começa a liberdade do outro.
Forte abraço.